É por uma portinha na região da Avenida Paulista que as
pessoas vão chegando uma a uma, com celulares em mãos. Elas baixaram um
aplicativo em casa, agendaram horário e estão esperando a vez de ter a íris
escaneada em troca de criptomoedas. Na fila, a maioria das pessoas não sabe
dizer para que serve isso. A maioria está ali por causa do dinheiro.
Uma delas é o motoboy Bruno Barbosa Souza, 25 anos. “Foi um
colega meu que indicou. Me disse que eles davam dinheiro, em torno de R$ 400
para ler a retina do olho, alguma coisa assim. Não sei para o que eles estão
fazendo isso”, disse.
Souza informou que o processo é simples. Basta entrar no
aplicativo, colocar seus dados pessoais e fazer o agendamento. “Um amigo me
falou que paga em bitcoin, algo assim. Estou precisando do dinheiro. Você faz
hoje e o dinheiro já está caindo amanhã. Ele recebeu em torno de R$ 450.”
O atendente Wallace Weslley, 31 anos, também foi motivado
pelo dinheiro. Ele participou do processo há algumas semanas e hoje esteve no
mesmo endereço na Rua Carlos Sampaio para levar a esposa. “Ela se cadastrou
nesse negócio da World. Vi que, através da íris, eles conseguem se aprofundar
em tudo, eles conseguem informações que a gente nem sabia que tinha. Eu já fiz
também. Eu fiz faz uns 15 dias e recebi em torno de R$ 200. Em 24 horas, o
dinheiro fica disponível. Você coloca o olho em uma máquina e tira também uma
selfie com o seu celular. Eles me falaram que estão fazendo isso para ter uma
segurança referente aos nossos dados.”
“Eu vi uma reportagem falando que não é só isso, e que
através da íris dos olhos eles podem estar coletando informações que ninguém
mais tem, a não ser eles. Tenho receio disso, muito receio. Vi muita gente
fazendo isso, mas dá um pouco de receio. Mas tá todo mundo apertado [de
dinheiro]”, relatou.
O casal Jurema Peres Panzetti, 72 anos, e José Virgílio, 73
anos, esteve neste endereço na região da Avenida Paulista na manhã de
sexta-feira (17). “A gente viu o anúncio para coletar a íris. Eles pagam em
torno de 45 worldcoins”, contaram. “E liberam 20 moedas (worldcoin) para
resgatar em até 48 horas e o restante, parcelando durante um ano”, explicou o
marido.
Segundo Jurema, antes do escaneamento da retina, um vídeo é
apresentado às pessoas para explicar sobre a empresa. “Eles passaram um vídeo
[antes do escaneamento] explicando o que é. Daí você faz a fotografia da íris e
ai eles passam um outro filme dizendo como você resgata [o dinheiro]. É tudo
bem explicado”, falou Jurema. “Eles falam que, em princípio, é para você
garantir que você é um ser humano. E dizem que os dados não ficam armazenados.
Assim que você tira a foto, ela é criptografada e os dados somem. Essa é a
recíproca da boa-fé. Vocês têm que acreditar neles”, reforçou o marido.
A reportagem da Agência Brasil conversou com muitas pessoas
no local. A maioria delas contou que, se fosse de graça, não estariam
participando do projeto.
Uma delas contou que participou do projeto em dezembro e
que, naquela oportunidade, não foi passado nenhum vídeo. Segundo ela, não houve
qualquer explicação sobre o que era o projeto, nem mesmo pelo aplicativo. Ela
fez pelo dinheiro e só depois foi pesquisar sobre o que se tratava.
A íris
O local de verificação, na Rua Carlos Sampaio, é apenas um
entre os vários endereços espalhados pela capital paulista para o escaneamento
da íris. Em alguns deles - disse uma pessoa que não quis se identificar -
formam-se filas gigantescas em busca de pagamento.
De acordo com Nathan Paschoalini, pesquisador da área de
governança e regulação da Data Privacy Brasil, até o momento, mais de um milhão
de pessoas já baixou o aplicativo e mais de 400 mil pessoas no Brasil já
fizeram o que se chama de “verificação da humanidade”. Segundo ele, é uma forma
de se provar que elas são reais e não robôs, já que a íris, assim como as
impressões digitais, são únicas. Embora as íris tenham uma vantagem: ela chega
a níveis maiores de precisão.
“A íris é dotada de uma característica muito específica, que
é a unicidade. Ou seja, cada indivíduo vai ter uma íris única, em que suas
características são preservadas ao longo de toda a duração de sua vida, de
forma estável. A não ser que aconteça algum tipo de acidente, ela preserva
todas as características ao longo da vida da pessoa. Por conta disso, a gente
pode dizer que ela tem um papel de identificador único e extremamente preciso”,
explicou Paschoalini.
Tools for Humanity
Por trás do escaneamento da íris está a empresa de
tecnologia Tools for Humanity, presente em 39 países, e que desenvolve o
projeto World ID, um sistema que se vale dos padrões da íris para criar um
código de validação, impossível de ser reproduzido por inteligência artificial.
A empresa é responsável pela fabricação de uma câmera avançada (Orb) que busca
diferenciar humanos de robôs e inteligências artificiais.
Um dos fundadores é Sam Altman, CEO da OpenIA, empresa do
ChatGPT. Por meio de nota, a rede World informou que “está criando as
ferramentas que as pessoas precisam para se preparar para a era da IA
(inteligência artificial), ao mesmo tempo preservando a privacidade
individual”.
“Dados biométricos como digitais dos dedos, formato da face,
voz, íris dos olhos, são marcadores exclusivos que identificam uma pessoa.
Diferentemente de uma senha que pode ser redefinida a qualquer tempo, as
informações biométricas identificarão uma pessoa durante toda a sua vida. Por
isso, a coleta, processamento e armazenamento desenfreado e generalizado de
dados biométricos preocupa tanto do ponto de vista da privacidade e até mesmo
dos direitos humanos."
Riscos
"Não sabemos ainda como essas informações serão
utilizadas quando associadas em conjunto com algoritmos avançados, além da
inteligência artificial (IA), podendo ser aberta uma porta para abusos, crimes
e irregularidades”, alerta Karen Borges, gerente Adjunta da Assessoria Jurídica
do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br).
Após ter a imagem da sua íris coletada, a empresa paga cerca
de 48 worldcoins [tokens de gestão da rede], uma espécie de criptomoeda da
própria empresa, que pode ser convertida em criptomoedas ou em reais e depois
sacada. Por se tratar de uma criptomoeda, o valor da worldcoin varia com
frequência. Segundo o site Coinbase a moeda estava avaliada em R$ 13,22, às 18h
do dia 16 de janeiro.
Tudo isso parece razoavelmente simples, mas especialistas
alertam que o escaneamento de íris pode representar riscos à segurança e à
privacidade dos dados.
“Estamos falando de um dado biométrico único em termos de
dado pessoal, é um dado que é capaz de te identificar e te autenticar desde o início
da sua vida até o final dela. Então existe uma sensibilidade muito grande em
ceder esse tipo de dado para uma iniciativa como essa. Não só como essa, mas
como outras que possam surgir no mesmo formato da WorldID. Então, o que eu
diria é o seguinte, as pessoas devem refletir sobre o tipo de dado que está
sendo coletado e para o que estão consentindo no fornecimento desses dados”,
avisou Paschoalini.
Pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), a íris é
considerada um dado biométrico ou um dado pessoal sensível. E, por isso, para
trabalhar com esses dados, é necessário consentimento, como a empresa tem feito
por meio do aplicativo. No entanto, esclareceu Paschoalini, esse consentimento
precisa ser qualificado.
“Estamos falando de consentimento qualificado, definido pela
LGPD como uma manifestação livre, inequívoca e informada. O que tem um ponto de
preocupação é o fato de haver compensação financeira. Ainda que a empresa
afirme que não é um pagamento pelo consentimento, o que temos visto é que
existe uma associação imediata entre o recebimento dos valores financeiros e
autorização para o escaneamento da íris. Ou seja, a impressão que passa é a de
que o sujeito não está indo lá coletar a sua íris pela finalidade de se
autenticar online, mas sim interessado em receber aqueles valores prometidos e
oferecidos. ERstamos falando de pessoas potencialmente mais pobres aderindo a
essa prática.”
“Não há dúvidas de que a coleta de dados por dinheiro é uma
prática duvidosa, podendo ser caracterizada como exploração de populações
vulneráveis. O dinheiro acaba sendo um atrativo no primeiro momento, fazendo
com as pessoas desconsiderem os riscos por trás da iniciativa, a exemplo do
risco de vazamento de marcadores exclusivos de identificação. Por isso, é
fundamental que as autoridades investiguem esse tipo de iniciativa, garantindo
que o direito à privacidade e proteção aos dados dos titulares sejam
respeitados”, ressaltou Karen Borges.
Escolha própria
Rodrigo Tozzi, chefe de operações no Brasil da Tools for
Humanity, empresa colaboradora do protocolo World, nega que a empresa faça
algum pagamento. “Os usuários que verificam sua humanidade podem escolher serem
recompensados com unidades de um token, um ativo virtual, chamado Worldcoin.
Fazendo uma comparação, é como se fosse uma ação do protocolo, que pode ser
vendida no mercado, como se vende uma ação em bolsa, e o valor obtido dependerá
do valor do ativo no momento da venda. Atualmente, os usuários recebem 48
Worldcoins no total. São 20 Worldcoins 48 horas após o momento do escaneamento,
e as outras 28 divididas pelos próximos 12 meses após o escaneamento. Trata-se
de um incentivo à adoção da prova de humanidade”, explicou.
Segurança e transparência dos dados
Outro risco que Paschoalini vê no procedimento que está
sendo adotado pela empresa é de que ela não tem garantida a segurança e a
anonimização dos dados. “E isso pode gerar riscos, como o de vazamento de
dados. E aí, especialmente com dados pessoais sensíveis e biométricos como a
íris, você pode escalar para situações de violações a direitos de não
discriminação ou para a própria dificuldade ou impossibilidade de autenticar
aquela pessoa verdadeiramente, considerando que foi rompida a relação de
confiança que existia no processo de tratamento de dados”, disse Paschoalini.
A gerente do NIC.br alerta também sobre a questão da
transparência no processo de coleta e no processamento e armazenamento dos
dados. “Um dos princípios da LGPD é a transparência. Por isso, é fundamental
que essas pessoas tenham conhecimento sobre o tratamento de seus dados
pessoais, identifiquem uma finalidade clara ao procedimento que estão se
submetendo, leiam atentamente o termo de consentimento que estão assinando e
avaliem a real necessidade da coleta de seus dados biométricos para a
finalidade indicada”, disse.
Por meio de nota, a Fundação World Foundation disse que “não
é incomum que ideias inovadoras e novas tecnologias levantem questões”.
“A Fundação World Foundation acredita que é importante que
os reguladores busquem informações ou esclarecimentos sobre suas preocupações.
A Fundação World está em total conformidade com todas as leis e regulamentos
aplicáveis que regem o processamento de dados pessoais nos mercados onde a
World opera. Isso inclui, mas não se limita à Lei de Proteção de Dados Pessoais
do Brasil ou LGPD (13.709/2018). Por meio do uso de tecnologia de ponta, a
World define os mais altos padrões de privacidade e segurança e incorpora
recursos avançados de preservação da privacidade”, informou.
Empresa
À Agência Brasil, Rodrigo Tozzi, chefe de operações no
Brasil da Tools for Humanity, empresa colaboradora do protocolo World, explicou
que a World “é um protocolo aberto e descentralizado que tem como objetivo
ajudar as pessoas a diferenciar interações humanas reais daquelas impulsionadas
por inteligência artificial (IA), além de aumentar o acesso à economia digital
global e proteger a confiança e a privacidade online”.
Segundo Tozzi, com os desafios propostos pela inteligência
artificial tais como as deepfakes, as fraudes de identidade e a desinformação,
“uma prova de humanidade se impõe como condição para que humanos e IA coexistam
de forma segura e produtiva no ambiente digital”.
Tozzi informou que a empresa está faz com o escaneamento de
íris é uma verificação de humanidade e que a empresa preza pela anonimização
dos dados.
Seres humanos únicos
“Para verificar sua humanidade, os interessados maiores de
18 anos devem baixar o World App e agendar um horário em um dos locais de
verificação espalhados por São Paulo. Lá, um dispositivo de última geração
chamado Orb, que se assemelha a uma câmera fotográfica de alta resolução,
captura uma imagem do olho e do rosto, que é imediatamente convertida por
algoritmos em uma representação numérica chamada de código de íris. A íris é a
maneira mais segura e confiável de verificar que as pessoas são seres humanos
únicos sem solicitar dados pessoais identificáveis como nome, idade, endereço
ou documento. As imagens originais da íris são então criptografadas de
ponta-a-ponta, enviadas para o telefone da pessoa e prontamente deletadas da
Orb”, disse.
Em entrevista à Agência Brasil, ele explicou que os códigos
de íris são fracionados por meio de criptografia avançada e então armazenados
em “nós computacionais operados por universidades e terceiros confiáveis, como
as Universidades de Berkeley, nos Estados Unidos, e Friedrich Alexander
Erlangen-Nürnberg, na Alemanha. Os fragmentos criptografados não revelam nada
sobre o indivíduo nem podem ser efetivamente vinculados de volta a ele. A World
assegura a efetiva anonimização dos dados”, disse.
Para ele, as preocupações dos especialistas se deve
principalmente “à falta de informações confiáveis a respeito do projeto e de
suas premissas”.
“A World não coloca em risco a privacidade das pessoas,
muito pelo contrário, é uma rede projetada para proteger a privacidade,
permitindo uma prova de humanidade privada e anônima, sem a necessidade de
saber informações pessoais, como nome, documento, telefone ou e-mail. A World
não armazena dados pessoais dos usuários. O protocolo sequer solicita dados
pessoais. A única informação exigida dos usuários é uma comprovação de que são
maiores de idade, via apresentação de documento pessoal nos locais de
verificação”, disse o chefe de operações no Brasil.
Fiscalização
Preocupada com os possíveis riscos, a Autoridade Nacional de
Proteção de Dados (ANPD), vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança
Pública instaurou um processo de fiscalização para “investigar o tratamento de
dados biométricos de usuários no contexto do projeto World ID”.
Para essa fiscalização, a ANPD pediu que a Tools for
Humanity preste esclarecimentos sobre alguns pontos como o contexto em que
ocorrem estas atividades e a transparência no tratamento dos dados pessoais
dessas pessoas que têm sua íris escaneada.
Em nota publicada na última quinta-feira, o órgão informou
que a Tools for Humanity encaminhou os documentos e as informações requeridas.
“Atualmente, o processo encontra-se em fase de análise da documentação
apresentada e o seu andamento pode ser acompanhado por qualquer interessado,
por meio do módulo de pesquisa pública da ANPD, localizado no
“Os dados pessoais biométricos, tais como a palma da mão, as
digitais dos dedos, a retina ou a íris dos olhos, o formato da face, a voz e a
maneira de andar constituem dados pessoais sensíveis. Em razão dos riscos mais
elevados que o tratamento desse tipo de dado pessoal pode oferecer, o
legislador conferiu a eles regime de proteção mais rigoroso, limitando as
hipóteses legais que autorizam o seu tratamento”, informou a ANPD.